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Seara: A guitarra ecológica da portuguesa Mai’land Guitars

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Fotografia: Cortesia da Mai’land Guitars

O mundo enfrenta uma grave crise climática que poderá ser decisiva para a espécie humana. Da alteração dos padrões climáticos que levam à ameaça da produção de alimentos até à subida do nível das águas do mar que se traduz em inundações cataclísmicas, o planeta Terra exige acções urgentes. Também a indústria das guitarras tem um forte impacto ambiental, estimando-se que existam pelo menos 900 milhões de guitarras a deixar um rasto visível de pegadas de carbono, uma vez que a grande maioria das guitarras são construídas a partir de madeiras raras e plantações antigas. Ao longo dos últimos anos, esta indústria assistiu a uma mão cheia de problemas relacionados com o desmatamento ilegal, escassez de matéria prima e regulamentos ambientais. De uma forma global, as fábricas produzem anualmente mais de 10 mil milhões de toneladas de CO2, contribuindo para cerca de 50% da poluição mundial, e ainda que os fabricantes de guitarras integrem um número relativamente pequeno nesta percentagem, muitas marcas já tomaram medidas para reduzir a sua pegada ecológica, com nomes como a Fender, Gibson e a Yamaha a focarem-se em fontes alternativas de madeiras certificadas. Em Portugal, mais precisamente em Viana do Castelo, encontramos João Miguel Rodrigues, designer e fundador da Mai’land Guitars, que opta por um caminho mais ecológico na produção de guitarras eléctricas, suportes e cases. Falamos com o luthier a respeito do modelo Seara, uma guitarra trabalhada a partir de cortiça expandida e madeiras recicladas.

«Acredito que o mercado das guitarras tem que tomar um rumo diferente para bem de todos mas sinto que é algo que já está a ser feito há alguns anos e não algo apenas cingido às guitarras», começa João Rodrigues por dizer em exclusivo à Guitarrista. «Todos os mercados a nível mundial têm que ter esta posição. O mercado das guitarras acaba por levar um bocadinho por tabela porque depende de recursos naturais que não têm auto-regeneração, pelo que é necessário tomar uma posição ecológica para assim reconstituir as matas que são cortadas, entre outras coisas. É necessário que a indústria das guitarras e a imobiliária, que utilizam madeira, tenham esse tipo de preocupação.»

A visão que dá origem à primeira guitarra eléctrica do mundo construída em cortiça ganhou fulgor a partir de um estudo conduzido pelo luthier, como partilha: «A marca teve início através de um estudo da cortiça para uma tese de mestrado que procurou fazer uma análise do material. A tese acabou por se materializar numa guitarra e à medida que fui investigando este material sustentável e ecológico fui-me apercebendo da falta de ecologia que uma guitarra em madeira podia ter. A marca acaba então por ganhar esta conotação ecológica, que as pessoas também lhe foram atribuindo, pois felizmente a cortiça tem uma boa fama. Tudo aquilo em que seja aplicado cortiça é tido como um objecto ecológico, o que não é necessariamente verdade, no entanto tentei criar regras dentro da nossa própria produção para apostarmos um pouco mais nesta visão. O início da Mai’land não foi criar uma guitarra que fosse sustentável e ecológica. A junção das duas visões é que acabou por criar uma guitarra que utiliza menos madeira e consequentemente torna-se mais ecológica.»

A postura de João Rodrigues não é, no entanto, radical: «Não gosto de adoptar uma perspectiva muito derrotista em relação ao mercado das guitarras. Na altura da tese tinha uma postura mais radical em relação à indústria das guitarras mas fui aprendendo que as coisas são um bocadinho diferentes e que a culpa não é só da indústria das guitarras, pois existem muitas outras que são responsáveis pela destruição das matas, havendo ainda assim uma massificação desta exploração desmedida das matas por parte da indústria das guitarras.» O luthier informa que actualmente são tomadas diferentes medidas por parte de grandes fabricantes, como é o caso da Taylor ou da Martin. «A Taylor criou o Ebony Project, o primeiro projecto grande que alguma marca fez em termos de preocupação ambiental. A Taylor procurou proteger o ébano pois estava a ser mal explorado, uma vez que a norma de algumas marcas era que se o ébano não fosse totalmente escuro não era aproveitado. As árvores eram então cortadas mas ao verificar-se que o ébano tinha manchas essas árvores não eram compradas pelas empresas e eram deitadas foras. O Ebony Project tentou trazer este assunto à praça pública para desmistificar a ideia de que o ébano não precisa de ser totalmente escuro para ser funcional, ou seja, para ter as suas propriedades acústicas e funcionais nas escalas das guitarras.» Também a Martin produziu a primeira guitarra 100% FSC através do recurso a materiais certificados e livres de plásticos. A iniciativa assistiu ao contributo de estudantes de 125 países depois da jovem activista Greta Thunberg ter iniciado um protesto junto ao parlamento da Suécia, onde exigiu acção por parte dos políticos em relação às alterações climáticas.

«As grandes empresas deviam levar a cabo auditorias rigorosas às empresas madeireiras, pois compram madeira a outros continentes que englobam países de 3º mundo e seria importante perceber como se trabalha a exploração da madeira nesses locais», prossegue o luthier. «As marcas precisam de ir à raíz da exploração para verificar se as matas estão a ser replantadas e de que forma estão a ser exploradas, pois na eventualidade de se levar a cabo uma destruição demasiado grande não vale a pena replantar, uma vez que o ecossistema não se vai reestabelecer em 20 anos, que é o tempo que uma árvore de grande porte demora a ficar própria para servir um ecossistema. Outra norma que acho de grande importância é a própria plantação das espécies e não necessariamente aquelas que são utilizadas nas guitarras. Acredito que existam marcas grandes que procuram plantar para futura exploração, ou seja, uma plantação que um dia se tornará matéria, mas falo mesmo em plantações livres em montes ardidos pois acredito que no futuro a indústria musical não irá poder utilizar madeira na construção de instrumentos. Será quase um luxo, da mesma forma que a indústria mobiliária hoje em dia trabalha quase só com aglomerados e misturas entre cartão e restos de madeira. Penso que isto vai chegar à indústria das guitarras e se esta indústria quiser manter o luxo de utilizar madeiras nobres, faria todo o sentido continuar a plantar e proteger as matas internacionais.»

Relativamente ao processo de escolha dos materiais no modelo Seara, João Rodrigues admite ser muito semelhante ao processo de uma guitarra normal: «Tentamos ter um pouco mais de critério na escolha da madeira para o corpo. Compramos madeira que tenha um timbre rico e que seja bem cortada, em quartos. A madeira que utilizamos no pickguard e noutros componentes é muitas vezes reciclada. Tentamos não comprar essa madeira e reutilizar através da ajuda de carpinteiros locais, que nos arranjam madeira com bastante qualidade e que acaba por ser uma surpresa. Podemos ter uma guitarra em que estes componentes vão ser em sucupira, que é uma madeira extremamente nobre, ou madeira de faia, que é mais comum, nacional e cuja densidade se aproxima à do freixo, que é uma madeira que procuramos muito mas que não é tão fácil de encontrar.» Quanto às propriedades acústicas da cortiça, a Mai’land adianta que «até hoje não conseguimos definir de que forma afecta ou altera ao som, ou lhe confere algum tipo de identidade muito própria». «Já tivemos músicos a dizer que a guitarra soa a cortiça, o que acreditamos ser impossível pois a cortiça percute muito pouco na medida em que é um material muito pouco denso, e só com a adulteração que lhe fazemos com resina é que lhe é conferida uma densidade mas muito mínima. Nunca fizemos testes muito rigorosos à guitarra de forma a perceber como é que a cortiça altera o som da guitarra. O que sabemos é que, uma vez que a guitarra tem um corpo fino que se estende através do braço, faz com que o instrumento tenha um sustain fora do normal para uma guitarra ao estilo Fender. Normalmente as guitarras com um braço colado é que conseguem ter um sustain maior e nós conseguimos obter um sustain bastante acima da média para guitarras com sistema bolt-on. A estética da cortiça foi também uma surpresa para nós. Através da receita que fizemos com a resina, descobrimos que a cortiça poderia obter um nível estético muito bom e as pessoas gostam da forma como a cortiça pode ganhar vida com a luz solar e escurecer com a luz não-natural. Essa adulteração através da luz acaba por ser um ponto interessante. Existe também o facto da estética da cortiça, ainda que seja cortiça expandida, nos colocar num patamar de produto português. Havia uma relação semântica muito grande com a guitarra portuguesa, apesar de ser uma simples guitarra eléctrica, e essa corrente de significados atraiu alguns músicos de renome [como é o caso de Miguel Araújo, Tatanka e João Só]. A leveza acaba também por ser uma consequência pelo facto de não usarmos madeira nas laterais. Como utilizamos cortiça, as guitarras não passam dos 3kg numa configuração Telecaster, o que é bom para os guitarristas que não gostam de sentir peso nos ombros durante muito tempo.»

A Mai’land assegura que os seus instrumentos, e particularmente o modelo Seara, não ficam a perder em nada pelo facto de serem trabalhados com madeiras recicladas, como João Miguel Rodrigues explica: «A madeira é reciclada porque a vamos buscar a carpinteiros que já não conseguem fazer mais nada com ela, no entanto para nós é como se fosse nova. A madeira é criteriosamente escolhida e tentamos que seja madeira de freixo ou faia, que tenha alguma densidade, ou pinho com muitos anos pois a resina já está muito cristalizada e acabamos por conseguir utilizá-la para fazer guitarras. Normalmente utilizamos a madeira reciclada para fazer o pickguard, o painel de controlo, a placa da cavidade, os botões… Interessa que tenha alguma densidade. O freixo é normalmente o que mais procuramos e gostamos por ser bastante densa e ter um grão muito bonito, embora seja mais difícil de encontrar.»

Sobre o acabamento, João Rodrigues explica que «para o corpo utilizamos poliuretano à base de água, que não compromete a parte ecológica e que é aplicado com uma boneca, com um pano ou papel. Aplicamos várias camadas até ficar com a protecção e o brilho que pretendemos. Para o braço, muitas vezes utilizamos o mesmo verniz que também resulta bem mas não tanto quanto o clássico tru-oil, muito conhecido na indústria das guitarras, que resulta bem e tem uma durabilidade muito boa».

Na origem do modelo Seara está a Telecaster, como João Rodrigues atesta: «O modelo base tem pickups Seymour Duncan e hardware Gotoh mas a origem é a Telecaster. Três posições, um volume e um tone, a ponte vintage com as três saddles em bronze, braço em maple com fretboard no mesmo material e pestana em osso. Depois o modelo foi evoluindo e cada cliente acaba por escolher as suas tipologias de pickups. Já fizemos Searas com três pickups, igual a uma Strat, já fizemos com humbuckers… Tentamos sempre garantir a qualidade dos componentes e proteger a guitarra nesse sentido. Aquilo que não controlamos, que somos nós a comprar e não a construir, tentamos que tenha uma qualidade já garantida de forma a conseguirmos colocá-la entre uma Fender Americana e uma Mexicana. Foi esta a nossa visão inicial pois percebemos que o nosso público-alvo dificilmente seria o mesmo público que iria comprar uma Fender Americana, algo com o qual não queríamos competir. Hoje em dia temos uma visão um pouco diferente mas na altura achávamos que fazia sentido estabelecer a Seara nesses termos. Actualmente percebemos que as coisas estão um bocadinho diferentes, ou seja, as pessoas que vêm ter connosco querem algo diferente e é nessa base que tentamos ganhar à concorrência através da personalização dos produtos e na abertura que damos para que cada cliente tenha o seu instrumento quase totalmente personalizável. Temos esta componente Custom Shop mantendo os preços de uma Fender Americana, que de outra forma os clientes não conseguiriam ter pois é difícil de obter um produto totalmente personalizável ao preço dos produtos da concorrência. Há ainda a questão de todas as guitarras serem diferentes e de não repetirmos projectos, pois ainda que seja sempre o mesmo modelo base procuramos fazer sempre algo de diferente.»

A Seara tem forte inspiração na Telecaster, o modelo clássico da Fender. João Rodrigues justifica: «A inspiração da Mai’land anda sempre lado a lado com a questão prática. No início, como fazíamos muitos protótipos, construíamos um corpo para ter uma guitarra montada em que pudéssemos experimentar, pelo que era muito prático para nós utilizarmos um sistema de montagem da Fender em que todos os componentes são montados com parafusos, para uma manutenção mais simples. Por outro lado, gostamos mais da Fender, particularmente da Telecaster, que é o modelo mais simples e fácil de prototipar. Foi uma união de factores que se prendiam na necessidade de sermos rápidos em termos uma guitarra pronta a tocar e experimentar, assim como o factor gosto. Foi este conjunto de factores que nos levou ao modelo Telecaster, que é claramente a inspiração da Seara e que depois acabou por se ir modificando embora mantenha a mesma base. As posições e distâncias dos primeiros modelos eram rigorosamente as mesmas da Telecaster e, embora hoje sejam diferentes, a génese está, sem dúvida alguma, na Telecaster.»

A acompanhar o modelo Seara encontra-se uma case também em cortiça: «A case em cortiça foi inevitável. Percebemos muito cedo que tínhamos que ter uma case para transportar os instrumentos. O primeiro protótipo serviu-se de cortiça expandida, o que não se revelou muito bom por ser muito leve e aguentar o impacto, no entanto, com o tempo, acaba por não manifestar a mesma consistência da cortiça natural. Avançámos então para um segundo protótipo, que é aquele que mantemos hoje, e embora ainda se utilize cortiça expandida, aquilo que as pessoas mais procuram é a cortiça natural por ter uma imagem mais rica e fácil de identificar enquanto cortiça e objecto português. Esta case que acompanha o modelo Seara tem um frame mais consistente, que protege o todo e não apenas zonas particulares da case. O frame envolve a cortiça e tem uma forma irregular inspirada no sobreiro. Cada fecho ou dobradiça é unido por esse frame mas não de uma forma directa. Cada case é desenhada de forma distinta, não havendo qualquer template pré-definido. Conforme o instrumento, desenhamos uma case sempre diferente, o que nos dá algum prazer e nos distingue de outras marcas.»

Para encomendar uma guitarra com selo da Mai’land, basta seguir os passos indicados por João Miguel Rodrigues: «Neste momento a melhor forma de nos contactarem é através das redes sociais, embora também nos possam contactar através de e-mail ou telemóvel. Fazemos uma primeira triagem através das redes sociais e depois as conversações continuam através de e-mail. Enviamos os provetes de cor e as hipóteses que cada cliente tem. Depois, com base nisso e nas necessidades do cliente, tentamos corresponder com opções em termos de pickups e hardware, acompanhando aquilo que o cliente vai pedindo com ilustrações que demonstram como ficará a guitarra em termos de cores e personalizações em termos de símbolos que sejam possíveis gravar, dentro dos nossos limites produtivos e da imagem que pretendemos manter dentro da marca. Assim que o orçamento final é aprovado passamos à produção, que é sempre acompanhada através de fotos, o que é um aspecto interessante para que o cliente consiga acompanhar todo o processo e ver o bloco de madeira que corresponderá ao corpo, antes de se tornar uma guitarra, e a madeira antes de ser cortada e tratada.»

Visita a Mai’land em @mailand.guitars

Editor da revista Guitarrista, da página Custom Guitar Makers, autor do livro "Kurt Cobain: A História Contada Em Guitarras" e ex-editor da Metal Hammer Portugal. Apaixonado por guitarras e com vasta experiência no mundo da música e relações públicas, tem dedicado a sua carreira a explorar e partilhar histórias e conhecimentos sobre este incrível instrumento.

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