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Magia e História: Adriano Sérgio e o Guitar Barrel Project
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4 semanas-
Por
Joel CostaHá momentos em que as estrelas se alinham e o talento excecional e um toque de magia conspiram para criar algo extraordinário. Foi precisamente isto que aconteceu quando o luthier português Adriano Sérgio, da Ergon Guitars, encontrou um tesouro de madeira de mogno envelhecida com uma história muito rica incorporada nas suas próprias fibras. Esta descoberta preparou o palco para o inovador projeto Guitarras do Marquês, ou The Guitar Barrel Project, em que seis luthiers internacionais se juntaram para criar instrumentos únicos a partir deste mogno com mais de 250 anos e que se crê outrora ter pertencido ao influente Marquês de Pombal.
Em entrevista à Guitarrista, Adriano Sérgio leva-nos numa viagem envolvente desde a conceção do projeto, nascido de um encontro fatídico com a madeira lendária, até ao processo colaborativo com outros luthiers e à eventual revelação das seis obras-primas num evento especial que contará com a estreia de um filme em que é documentado todo o processo, e que decorrerá no dia 14 de Maio, na Villa Oeiras.
Guitarrista: Acredito que com este projeto exista toda uma responsabilidade de honrar o contexto histórico e o legado quer da madeira, quer do Marquês de Pombal. Quais foram os fatores que tiveste em consideração na hora de escolher a finalidade das madeiras e os luthiers que as viriam a trabalhar?
Adriano Sérgio: «Descobri a madeira por mero acaso. Quando me apercebi, não tinha noção de que os tonéis de vinho poderiam ter sido feitos de mogno. O mogno tem várias origens. Estamos a falar de uma espécie muito leve que é da América do Sul, certamente, e temos outro mogno mais pesado que também pode ser do Brasil e de África, mas a maior parte acho que vem da América do Sul. Faz sentido, pois o irmão do Marquês de Pombal era negociador de madeiras. Eu não tinha capital suficiente para comprar tudo e então falei com o Ulrich Teuffel. Entre os dois, decidimos comprar tudo, o que são cerca de seis toneladas e não quer dizer que se consiga aproveitar tudo, longe de metade. Mas é uma madeira muito especial, em termos de corte e estabilidade, e também de história. Como sou uma boca larga, fui a uma feira em Milão e estava lá o Claudio Pagelli, o Nik Huber, o Michael Spalt e o Ulrich. Falei-lhes acerca disto e perguntei porque é que não fazíamos um projeto juntos com esta ideia, sem ter ainda uma ideia muito clara.»
Contexto histórico e colaboração com Ulrich Teuffel e Andy Manson
«O Ulrich é uma pessoa super bem informada e gosta muito do Iluminismo, Iluminismo esse que aconteceu muito por causa do Terramoto de Lisboa, com este evento ocorrido em 1755 a colocar a Igreja em questão. Na altura do terramoto, a Alemanha ajudou Lisboa enviando madeira, havia uma relação enorme com a Inglaterra, o Marquês de Pombal foi embaixador na Áustria… Nessa altura, Portugal era um país riquíssimo e Lisboa era o porto da Europa. Queria convidar o Andy Manson mas depois era muita gente, já não estávamos sozinhos, mas todos comentaram que sem ele não faria sentido, o que me deixou contente pois tenho uma relação muito próxima com o Andy. Basicamente não pensei muito nas coisas, pois só costumo fazê-lo depois de agir, mas a ideia passou por cada um construir uma guitarra em segredo, com o tema como Lisboa na altura do terramoto, pois as madeiras eram do Marquês de Pombal.»
Marquês de Pombal
«O senhor a quem comprei as madeiras, na zona de Santarém, disse-me que se lembra do seu bisavô contar-lhe que as madeiras vieram da quinta do Marquês de Pombal. Mais tarde, quando veio a público, Oeiras ouviu isso e contactaram-me para ver as madeiras, os tonéis já desmanchados sem os aros de metal, mas ainda assim alinhados e marcados, e coincidiu com o espaço disponível na adega do Marquês de Pombal, com o tamanho a ser exatamente o mesmo. A Câmara de Oeiras comprou-nos um barril de volta, mandou-o restaurar, e envelheceram um vinho lá, pois é a única forma de sabermos como o vinho sabia naquela altura. A vida como vivemos hoje não seria a mesma sem o terramoto de 1755. Tudo foi colocado em causa, pois as pessoas que se refugiaram na igreja morreram queimadas no Dia de Todos-os-Santos, e aquelas que estavam nos bordéis e nas casas de jogo de Ourique sobreviveram. As pessoas questionaram-se se Deus existiria mesmo. Se não fosse isso, o deixar de ter medo do castigo divino, o rock’n’roll se calhar não existiria.»
Apresentação
«Procurei uma produtora de cinema interessada em acompanhar este processo e encontrei-a na forma da Força Maior, com realização do Hélder Faria. Arranjamos alguns fundos, a Câmara de Oeiras também contribuiu e fizemos um filme-documentário de 120 minutos com imagens do processo de construção, etc. Este filme será apresentado no dia 14 de Maio, às 21h00, no Palácio Marquês de Pombal, em Oeiras. Será ao ar livre e as guitarras estarão expostas do meio-dia à meia-noite, e teremos o Manuel Rocha, responsável pela sonoplastia do filme, a tocar ao vivo durante a apresentação do filme. O vinho será igualmente apresentado.»
«É uma carga emocional grande. Faz-nos pensar acerca de coisas que de outra maneira não pensaríamos.»
Quais são os desafios a contornar quando temos uma madeira com mais de 250 anos diante de nós?
Não a podemos tratar como uma madeira qualquer. Para mim e para todos os meus colegas que fizeram as guitarras, é uma carga emocional grande. Em termos sonoros não sabemos muito bem o que vai sair pois é a primeira vez que trabalhamos com uma madeira do género. Cada um tem a sua própria abordagem e traz ideias e emoções novas. É um sentido de responsabilidade, e por isso mesmo é que o trabalho de cada um de nós é muito especial. Todas as guitarras estão dispostas no meu quarto, vejo-as todos os dias. Há mesmo uma carga emocional muito grande, mas isso só acontece se tiveres consciência do período da história do qual elas fazem parte. Uma pessoa com menos formação acerca desse lado da história pode dar-lhe um valor diferente mas posso dizer-te que o facto dessa maneira ter estado com vinho durante tantos anos, ganhou muitos cristais, e ver as marcas profundas das espátulas enormes que retiraram o sarro fez-me perceber que só crianças poderiam ter cabido ali para fazer isso. Estar a trabalhar e ver essas marcas é pesado, mas era a realidade da altura. No fundo educa-nos. Faz-nos pensar acerca de coisas que de outra maneira não pensaríamos.
«A madeira é muito especial e acústica: basta pegares nela que fala contigo.»
Em termos das propriedades do timbre, embora não soubesses bem o que esperar no início, o que é que já nos podes dizer acerca deste mogno?
Usei dois tipos diferentes de mogno na minha guitarra. Tem uma estabilidade incrível e é muita dura, até para dobrar ilhargas. Eu não o fiz mas o Claudio Pagelli dobrou nos protótipos que fez. Está tão seca que é difícil, mas é super estável. O timbre é genial. Dou muita importância à madeira, coleciono-a há vários anos e dificilmente uso madeira que não tenha estado comigo durante cinco a seis anos. É muito especial e acústica: basta pegares nela que ela fala contigo.
«Tendo em conta que foi um acontecimento que abalou o mundo, achei importante trazer pessoas também de todo o mundo para iniciar o projeto.»
Há pouco falavas sobre as relações entre Portugal, o Monarca e o próprio Marquês com outros reinos europeus, pelo que faz sentido que esta colaboração inclua luthiers de nacionalidades diferentes. Ainda assim, não temes que pelo facto desta madeira estar ligada à história de Portugal venhas a receber críticas negativas pela escolha dos participantes não assentir exclusivamente em luthiers portugueses?
É provável e percebo isso. Não quer dizer que este projeto se fique por aqui. É só o início e não quer dizer que não convide outras pessoas ou essas pessoas tenham ideias e peçam para participar. A questão é que eu partilhei essa madeira com pessoas que acredito que dão valor à madeira e com capital para o fazer também. Eu estava envolvido naquele ciclo. Tendo em conta que foi um acontecimento que abalou o mundo, achei importante trazer pessoas também de todo o mundo para iniciar o projeto. Não dá para fazer tudo nem para convidar toda a gente. Dá imenso trabalho e custa imenso dinheiro. Estou a fazer o melhor que posso e se alguém tiver ideias para fazer melhor ainda, bora lá!
Com o documentário, e é óbvio que isto terá uma repercussão internacional pois são várias pessoas de países diferentes a trabalhar neste projeto, qual é o impacto que esperas ter na indústria dos instrumentos personalizados?
No mínimo será mostrar ao mundo que há pessoas que fazem guitarras em casa porque amam e respeitam aquilo que fazem. Que há pessoas que empenham a sua vida para fazer isto e que fazem coisas especiais. Espero que seja uma coisa boa.»
Acabará por ser como o Terramoto de Lisboa, dando origem a uma sequência de eventos.
Acho que sim, é um bom paralelismo.
Este projeto acaba também por ser uma prática sustentável, uma vez que estão a trabalhar com materiais recuperados ou reciclados. Esperas conseguir mostrar a outros luthiers e entusiastas das guitarras que existem formas novas, inovadoras e inspiradoras de incorporar estas práticas sustentáveis no seu trabalho?
Sem dúvida, claro que sim. Faço parte da EGB (European Guitar Builders). Fazia parte da direção mas saí há uns meses, pois estava na altura. Há um projeto chamado Local Wood Challenge que passa por utilizar madeira local e reciclada. As fábricas consomem árvores mais depressa do que elas crescem. A quantidade de madeira que se queima… As pessoas queimam sem ter a mínima ideia do que estão a fazer, pois pode ser usada para outras coisas e é melhor do que a madeira nova ou recentemente cortada. Existe uma consciência maior, não das fábricas mas dos construtores de autor, de que a solução passa por reutilizar materiais.
O evento tem início às 12h00 e prolonga-se até à meia-noite, com a apresentação do documentário e concerto a decorrer a partir das 21h. A entrada é livre.
Sabe mais em https://www.theguitarbarrelproject.com/
Editor da revista Guitarrista, da página Custom Guitar Makers, autor do livro "Kurt Cobain: A História Contada Em Guitarras" e ex-editor da Metal Hammer Portugal. Apaixonado por guitarras e com vasta experiência no mundo da música e relações públicas, tem dedicado a sua carreira a explorar e partilhar histórias e conhecimentos sobre este incrível instrumento.