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Guitar Barrel Project: O Legado do Mogno do Marquês de Pombal
O Guitar Barrel Project ecoa a melodiosa dança entre história e arte, tecendo uma sinfonia inigualável através do primoroso trabalho de luthiers internacionais.
Publicado há
2 semanas-
Por
Joel CostaO Guitar Barrel Project, também conhecido como Guitarras do Marquês, é um empreendimento que teve origem após a descoberta de tonéis de mogno que terão pertencido à adega do Marquês de Pombal na Oeiras do Século XVIII. A descoberta do luthier português Adriano Sérgio preparou o palco para a criação de seis guitarras de autor que jamais serão replicadas, procurando desta forma homenagear a história desta madeira preciosa. Inspiradas no terramoto que em 1755 devastou Lisboa no Dia de Todos os Santos (a catástrofe despoletaria a Era do Iluminismo, um tempo marcado pelo triunfo do pensamento científico e pelas revoluções políticas), a revelação destas guitarras únicas criadas por Nik Huber da Alemanha, Andy Manson do Reino Unido, Claudia e Claudio Pagelli da Suíça, Michael e Tania Spalt da Áustria, Ulrich Teuffel da Alemanha e o próprio Adriano Sérgio a representar Portugal, teve lugar a 14 de Maio, na adega do Palácio do Marquês de Pombal.
Claudio e Claudia Pagelli foram os primeiros a partilhar as suas reflexões sobre a sua criação única. Claudio afirmou que o objetivo não passava por criar uma guitarra convencional, mas sim preservar a forma original do pedaço de madeira escolhido, respeitando a sua história e singularidade. O modelo concebido pelos Pagelli revela as marcas deixadas pela limpeza do tonel, uma tarefa que requeria uma entrada tão minúscula que somente uma criança conseguiria adentrá-lo para realizar a sua manutenção manual. A frente da guitarra evoca as ondas tumultuosas do tsunami que assolou a capital portuguesa, com a representação do fogo que consumiu a cidade a encontrar-se imortalizada ao longo da escala de ébano. As barras metálicas onduladas foram meticulosamente aplicadas para conferir à guitarra a sua funcionalidade enquanto instrumento musical. As cravelhas, por sua vez, foram concebidas seguindo os critérios adotados na construção dos violinos do século XVIII. No entanto, o aspeto mais impressionante desta guitarra atípica reside nos trastes, pois estes seguem o método “True Temperament”, uma técnica que implica a adoção de uma forma ondulada que permite atingir uma entonação perfeita.
O modelo semi-acústico criado por Nik Huber, apesar de apresentar a forma mais tradicional entre os seis modelos exibidos, não deixa de ser uma obra repleta de detalhes significativos. Mantendo-se fiel à sua metodologia, todos os ornamentos presentes na guitarra foram inspirados em elementos decorativos do Palácio do Marquês de Pombal. Nas costas do instrumento, encontra-se um ícone de uma figura a beber, similar ao que se pode observar no próprio Palácio, numa delicada e bela execução em madrepérola. Se o corpo da guitarra transmite uma homenagem a uma Lisboa de tempos idos, a escala apresenta-nos uma série de representações dos principais edifícios da Lisboa contemporânea, estabelecendo assim uma relação entre duas eras distintas.
Mantendo-se fiel à sua identidade visual, Adriano Sérgio desenhou uma guitarra precisamente no mesmo dia e à mesma hora em que se deu o aniversário deste acontecimento trágico, limitando-se aos mesmos 18 minutos que durou o evento catastrófico. Inspirado na guitarra portuguesa, o design divide a metade superior da inferior através da representação de uma falha tectónica, projetando as cores do oceano, da terra e do fogo. Na metade superior do corpo do instrumento, retrata-se uma Lisboa em ruínas, enquanto que o braço e a cabeça da guitarra refletem as zonas de prostituição e jogo que sobreviveram à catástrofe. Inclui-se também uma cruz invertida, simbolizando o questionamento à Igreja e ao divino que se seguiu ao terramoto de 1755. A ponte do instrumento representa uma pequena caravela portuguesa repleta de detalhes, e os potenciómetros fazem referência aos barris. Nas costas, encontramos o símbolo do infinito, utilizado pelo Marquês de Pombal e os seus irmãos. O braço da guitarra, feito em mogno, apresenta uma escala em Pau Rosa, provavelmente de origem africana e com a madeira a ser também descoberta por mero acaso.
Seria impossível não estabelecer uma ligação entre o tonel de vinho, restaurado pela Câmara Municipal de Oeiras e exposto com as guitarras, e o modelo proposto pelo alemão Ulrich Teuffel. Num processo que contraria o seu método de trabalho habitual, Teuffel, que normalmente constrói os seus instrumentos recorrendo a máquinas, optou por utilizar ferramentas e pedaços de madeira que poderia encontrar ao deambular por Lisboa após o terramoto de 1755. A maneira como as diferentes peças foram coladas entre si foi idealizada pelo próprio luthier, seguindo uma receita da época que misturava pó de madeira, cinza e outros elementos para curar feridas. Teuffel criou ainda um pequeno forno para derreter o latão dos tonéis, o que permitiu construir a ponte, os botões e a ponta do seletor dos captadores. O headstock e a metade superior do braço da guitarra foram pintados de azul, uma cor muito especial e dispendiosa no século XVIII. De forma intencional, Teuffel optou por não proteger o acabamento azul, o que significa que a utilização da guitarra levará, com o tempo, ao desvanecimento da cor.
Andy Manson, luthier inglês radicado em Portugal, empenhou-se em criar um instrumento semi-acústico funcional, mas apto a produzir música de qualidade, sem descurar o seu ímpeto criativo, fortemente inspirado no estilo barroco da época e nos detalhes arquitetónicos do Palácio. A parte superior esquerda do instrumento simboliza o tsunami, enquanto as costas representam a explosão de um barril que, tal como a Fénix, dá origem ao renascer de ideias modernas, como a guitarra elétrica. Manson descreveu ainda a madeira utilizada como sendo de uma natureza mágica.
Finalmente, Michael e Tania Spalt elucidaram o público acerca do simbolismo inerente à sua criação. Fascinados pelo significado histórico da catástrofe, os Spalt procuraram reproduzir a energia libertada pelo terramoto através de ondas circulares douradas situadas no centro do corpo da guitarra. A estética do modelo elétrico procura ainda representar a pobreza espiritual que Portugal experienciava na altura, em contraste com a riqueza material. A escala ilustra as chamas dos Autos de Fé da Inquisição, culminando num ponto de interrogação, alusivo ao direito inalienável dos seres humanos de questionarem tudo, em vez de aceitarem cegamente os dogmas da Igreja. Nas costas do instrumento, observa-se que o centro da guitarra é unido às partes esquerda e direita por uma peça em alumínio, característica comum nos instrumentos assinados por Michael Spalt.
Adriano Sérgio desvendou que, entre as madeiras encontradas, existia um tipo de mogno mais leve, possivelmente oriundo das Honduras, e uma variedade mais densa, proveniente do Brasil. Todos os instrumentos foram equipados com cordas de aço e receberam acabamentos à base de óleos ou verniz. O luthier responsável pela Ergon Guitars adiantou ainda que subsiste mogno proveniente da adega do Marquês de Pombal e que novas ideias serão concebidas para dar continuidade a este projeto, que congregou artesãos de diferentes pontos do globo.
O processo de construção das guitarras foi documentado pelo realizador Hélder Faria e pelo consultor Luís Filipe Rocha, com a estreia do documentário a acontecer um pouco mais tarde, às 21h.
Acompanha o Guitar Barrel Project nesta ligação.
Fotografia: Cortesia da Guitar Barrel Project
Editor da revista Guitarrista, da página Custom Guitar Makers, autor do livro "Kurt Cobain: A História Contada Em Guitarras" e ex-editor da Metal Hammer Portugal. Apaixonado por guitarras e com vasta experiência no mundo da música e relações públicas, tem dedicado a sua carreira a explorar e partilhar histórias e conhecimentos sobre este incrível instrumento.